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#03 — Horror queer: os monstros somos nós
E está tudo bem ser um monstro
Eu gosto de metáforas e analogias. Cassandra Clare foi uma das autoras responsáveis por me tornar leitora, e sempre creditei a ela o meu gosto por coisas como “o cabelo dele era dourado como o sol” ou “aquela casa tinha o aroma das flores no verão”. Adoro a possibilidade de falar sobre algo usando comparações, palavras que contam não apenas um fato, mas também a interpretação de quem está narrando a cena. É algo que tento levar para a minha escrita, inclusive.
Mas, analisando bem, na verdade aprendi a gostar de metáforas e analogias muito antes dos livros. As metáforas entraram na minha vida há muito mais tempo, graças aos filmes de terror.
Porque em vários filmes de terror existe um monstro. E, muitas vezes, esse monstro — vampiro, lobisomem, alien, assassino, demônio ou algo do tipo — é apenas (como) uma pessoa queer.
Oie! Antes de aprofundar no texto, deixa eu me apresentar 🔮
💀 Meu nome é Gih Alves, sou publicitária, escritora, medrosa e apaixonada por histórias de terror, seja na literatura ou no audiovisual. Adoro ler textos teóricos e acadêmicos sobre as coisas que amo, e essa newsletter é uma forma de organizar meus pensamentos e compartilhar um pouco das minhas opiniões sobre horror. Aqui você vai encontrar reflexões sobre o gênero, indicações de obras que eu gosto e sugestões de livros teóricos sobre o assunto.
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Horror queer: um (breve) panorama
Na primeira edição da Outro Pesadelo, sobre a relação do medo com o horror, falei que uma das coisas que mais gosto no gênero é como nós, espectadores, podemos nos encontrar nas histórias. Ao falar sobre temores da sociedade, o terror fala sobre pessoas, sobre inquietações que atingem certos grupos da sociedade, sobre sentimentos vividos. E por isso, entre todas essas coisas, fala também sobre a monstruosidade de ser queer.
Esse paralelo entre monstruosidade e queerness acontece há muito tempo. Em Monsters in the closet: Homosexuality and the Horror Film, Harry M. Benshoff traça a intersecção histórica do horror e do queer, desde os monstros da Universal Pictures até a epidemia de HIV da década de 1980, que intensificou ainda mais a imagem das pessoas LGBTQIA+ como predadoras. Logo na introdução do livro, Benshoff fala sobre um estudo de 1984 que mapeou atitudes anti gays e lésbicas e mostrou três tipos de medo que pessoas héteros tinham (…têm?) em relação a pessoas queer. São eles:
(1) A homossexualidade como uma ameaça ao indivíduo — o medo de que alguém que você conhece (ou você mesmo) possa ser homossexual.
(2) A homossexualidade como uma ameaça para os outros — os homossexuais têm sido frequentemente associados na mídia a abuso sexual infantil, estupro e violência.
(3) A homossexualidade como uma ameaça à comunidade e a outros componentes da cultura — os homossexuais supostamente representam a destruição da família nuclear procriadora, os papéis tradicionais de gênero e (para usar uma frase da moda) os “valores familiares”.
Em resumo: o medo de que ser ou conviver com pessoas LGBTQIA+ pode destruir tudo que era (e ainda é, sejamos honestos) considerado “bom e moral”. Essa lógica vai de encontro a um elemento muito presente em obras de terror, apontado pelo pesquisador Robin Wood lá na década de 1970: o monstro ou vilão costuma ser o “Outro” predatório, algo que ameaça a norma social. Tal norma, por sua vez, é comumente representada por um casal heterossexual ou pela família tradicional completa — pais e filhos brancos, de classe média, cis e héteros, com sorrisos dignos de comercial de margarina. Assim, numa relação direta, Benshoff diz que “o monstro está para a ‘normalidade’, assim como o homossexual está para o heterossexual” (1997, p. 2, tradução livre).
Segundo Noël Carroll no livro Filosofia do horror ou paradoxos do coração (1997), uma representação comum do monstro é como algo abjeto e impuro. Isso acontece porque o monstro é incompleto, contraditório ou irregular; difícil de compreender e adequar aos padrões vigentes. É possível pensar, a partir disso, no hábito de aludir às criaturas como “isso” (it) ou “eles” (they), pois mostra que monstros não se encaixam em categorias preestabelecidas. Também não é incomum que os monstros sejam descritos como “inconcebíveis” ou “indescritíveis”, justamente por essa dificuldade de catalogação. Em inglês, they é tradicionalmente um pronome da terceira pessoa do plural, porém vem sendo usado também no singular para se referir a pessoas que não se enquadram na normal binária de gênero — e que, assim como os monstros, também não podem ser classificadas dentro de categorias já estabelecidas e estão fora de uma lógica dualista.
E a conexão não se dá apenas entre o monstruoso e a não binaridade. Na verdade, estende-se a tudo que foge da norma, afinal, o monstro é algo difícil de classificar — ser humano ou monstro? Alien ou pessoa? Adolescente ou demônio?
The rocky horror picture show (dir. Jim Sharman, 1975)
No mesmo caminho, pessoas queer também estão fora da norma e não se encaixam em padrões. No livro Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer, Guacira Lopes Louro explica que o termo queer abrange tudo aquilo que é diferente da norma e que não deseja ser integrado nem tolerado. O queer é “um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade” (Louro, 2004, p. 7-8). Enquanto pessoas queer, assumimos o desconforto da ambiguidade, do entre lugares, do indeterminável. Tal como os monstros das histórias, não nos encaixamos no padrão e estamos constantemente rompendo com as normas apenas por existir.
E é na intersecção entre o monstruoso e o queer que se chega ao horror queer. Mais que um subgênero, o horror queer é uma categoria, e pode estar presente em histórias de diferentes subgêneros, dos monstros da Universal, aos slashers adolescentes da década de 2020, até o terror psicológico. São histórias com personagens dissidentes, à margem, estranhos. Monstros por sua natureza inumana, mas também por suas performances de gênero e sexualidade.
De volta a Benshoff (é um livro muito bom, recomendo muito a leitura!), vemos que o autor defende que existem pelo menos quatro formas em que a homossexualidade e a queerness podem se cruzar nas telas. A primeira é quando temos personagens explicitamente queer. A segunda forma é quando uma obra é feita por uma pessoa queer — seja na direção, roteiro, produção, atuação etc., mesmo que não haja personagens queer na história. Nem todo terror criado por pessoas queer é obrigatoriamente horror queer, mas essa é uma forma de filtrar, sim. A terceira maneira está no uso de subtextos e metáforas, que inserem a queerness pelos detalhes, nas entrelinhas do texto, naquilo que é dito e principalmente no que não é. Já a quarta está na relação subjetiva entre as narrativas e a interpretação individual dos espectadores.
O jeito mais fácil de saber se uma obra é queer é a presença de personagens explicitamente queer, porém a forma mais comum durante as várias décadas do cinema (estadunidense), de acordo com Benshoff, foi a terceira: metáforas e alegorias. Isso aconteceu pela forte influência do Código de Produção de Hollywood, que perdurou de 1930 ao final dos anos 1960. Mais conhecido como Código Hays, ele trazia diretrizes impostas pelo pastor Will Hays que proibiam a representação de pessoas e relações queer nos filmes. A repressão da Igreja Católica somou-se a isso e, em 1934, teve início uma campanha de boicote a filmes que não atendessem à moral católica.
Esse cenário resultou em uma força ainda maior das metáforas, já que os personagens à margem das normas de gênero e sexualidade precisavam estar escondidos à vista de todos. Nessa leva temos obras como Frankenstein (1931) e A noiva de Frankenstein (1935), ambos dirigidos por James Whale (diretor gay assumido e responsável por vários sucessos da Universal), que falavam sobre a solidão das pessoas queer e a criação superficial da sexualidade. Outro exemplo é A filha de Drácula (dir. Lambert Hillyer, 1936), que traz no enredo uma forte metáfora sobre a patologização de sexualidades dissidentes.
Pessoalmente, eu gosto também da quarta forma apontada por Benshoff: interpretação e conexão pessoal entre obra e espectador. A criação de sentidos através de sentimentos. Costumo dizer que tudo que gosto é, no mínimo, ligeiramente queer — afinal, eu sou queer; se eu gostei de algo, por que essa coisa também não seria? Claro que essa interpretação não existe no limbo. Os significados já produzidos sobre queerness e horror ajudam, uma vez que, mesmo sem intenção, a conexão entre esses dois elementos já foram estabelecidas. Ainda assim, é possível olhar para qualquer obra e analisá-la sob um viés queer, pensar em conexões individuais, aquela representatividade que pode não abraçar um grupo inteiro, mas abraça uma pessoa e a faz pensar “ah, sim, eu entendo, já senti isso”.
Após o fim do Código Hays, os produtores tiveram mais espaço para explicitar os desejos queer. Mesmo assim, o medo em torno de ser e conviver com pessoas LGBTQIA+ seguiu existindo e, como mencionei antes, foi intensificado com a epidemia de HIV da década de 1980, e aí… Já dá pra imaginar, né? Mais monstros, desviados, um atentado à normalidade.
Um grande exemplo desse período é A hora do pesadelo 2: a vingança de Freddy (dir. Jack Sholder, 1985). No filme, o protagonista Jesse Walsh (Mark Patton) vem sendo assombrado por Freddy Krueger (Robert Englund), o conhecido assassino da Elm Street. Dessa vez, porém, em vez de apenas querer matar suas vítimas, Freddy deseja chegar ao mundo real… através de Jesse. Há um mal dentro do protagonista, e esse mal pode ser tanto a presença de Freddy quanto a orientação sexual de Jesse. Todas as interações dos dois personagens gritam uma monstruosidade que vai além do monstro literal e entram no campo metafórico, da sexualidade reprimida e assustadora, e não é raro ouvir que A vingança de Freddy é “o filme de horror mais gay da história”.
A hora do pesadelo 2: a vingança de Freddy (dir. Jack Sholder, 1985)
Por fim — um fim que na verdade é apenas o começo —, Benshoff diz (e eu concordo) que é errado relacionar queerness e monstruosidade de forma negativa. Se assumir como monstro é uma estratégia de empoderamento, é pegar para si um rótulo que a cultura heteronormativa tentou nos forçar, e declarar que sim, somos os monstros, e daí? Pessoas queer nunca estarão dentro da normalidade, porque “normalidade” exige uma padronização, uma caixinha que não nos comporta. Então, se abraçar o monstro que somos — na vida e na ficção — é um caminho para sermos nós mesmos, por que não fazer isso?
E, bem… Eu sempre me atraí mais pelos monstros mesmo.
Nesta edição da Outro Pesadelo, apenas pincelei um pouco do horror queer, focando mais no cinema — ainda pretendo falar sobre o horror queer na literatura e na televisão. Esse tema pode render muitos outros textos, conversas e reflexões, mas não é possível de falar de tudo, quem dirá tudo de uma vez só. É um início!
Muito em breve pretendo trazer uma lista com indicação de filmes, livros e séries que amo, de diferentes épocas, com diferentes monstros. E, quem sabe, eu já não possa falar também sobre certos fantasmas gays (termo guarda-chuva) e estudantes assombradas (e gays) que eu mesma escrevi e estão perto de serem lançados 👀
Referências:
Filosofia do horror ou paradoxos do coração, de Noël Carroll.
Monsters in the closet: Homosexuality and the Horror Film, de Harry M. Benshoff.
The American Nightmare: Essays on the Horror Film, de Robin Wood.
Scream, Queen! My Nightmare on Elm Street, dir. Roman Chimienti e Tyler Jensen [documentário].
Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer, de Guacira Lopes Louro.
Algumas indicações:
O G.H.O.S.T. é um núcleo de estudos do Instituto de Letras da UFRGS focado em narrativas de horror. Além de trazer informações no perfil do Instagram, eles também organizam o Ghost Talk, com ciclos de palestras on-line. No dia 04 de setembro começa o próximo ciclo, e a primeira palestra é sobre Mariana Enríquez!
Concluí a leitura de Pedro Páramo e gostei muito. O livro foi escrito pelo mexicano Juan Rulfo e publicado em 1955, e fala sobre memória de uma forma muito, muito bonita. O que fica quando morremos? Para onde vai nossa alma? A narrativa é fragmentada, vai e volta no tempo, e mistura primeira e terceira pessoa entre as cenas. O tipo de livro para reler, com a certeza de encontrar ainda mais significados na segunda leitura.
Conheci a Loja Flutuante há algumas semanas e estou encantada. Ela tem peças (principalmente camisetas) com estampas que unem filmes de terror com cultura pop! Estou a um passo de cometer uma compra e pegar a camiseta de Buffy…
Compras realizadas através de links indicados geram comissão; você não paga nada a mais, mas eu ganho algo! Essa edição da Outro Pesadelo foi revisada por Natália Pinheiro.
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