#01 — Medo de quê?

Aquela edição em que discutimos a relação entre terror e medo.

As pessoas sentem medo o tempo todo: na sala de espera de um hospital, no decolar de um avião, assistindo um filme; o medo é um sentimento presente na nossa vida, intrínseco à humanidade — e desagradável, de forma geral.

Na introdução da Outro Pesadelo, falei sobre como demorei a entender que gostava de horror porque sou medrosa. Eu ainda não gosto de dormir completamente no escuro e evito passar mais de quinze minutos pensando em morte para não entrar em parafuso (o que é meio irônico, considerando que morte é um tema que permeia muito do que escrevo). Também tenho medo quando a polícia passa na minha rua, de uma bala perdida encontrar alguém, de lugares altos. E fogo. Nossa, eu tenho muito medo de fogo.

Ainda assim, não eram essas as coisas que me faziam declarar que não gostava de terror. Eram os jumpscares, cenas de susto capazes de me arrancar gritos e acelerar meu coração de um jeito bem ruim. Compreender isso me fez perceber que sim, amo terror, e também me deixou curiosa, querendo saber qual a relação entre o medo e o horror. E por que não começar oficialmente essa newsletter explorando esse assunto que tanto me atraiu por um tempo?

Oie! Antes de aprofundar no texto, deixa eu me apresentar 🔮

💀 Meu nome é Gih Alves, sou publicitária, escritora, medrosa e apaixonada por histórias de terror, seja na literatura ou no audiovisual. Adoro ler textos teóricos e acadêmicos sobre as coisas que amo, e essa newsletter é uma forma de organizar meus pensamentos e compartilhar um pouco das minhas opiniões sobre horror. Aqui você vai encontrar reflexões sobre o gênero, indicações de obras que eu gosto e sugestões de livros teóricos sobre o assunto.

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Boa leitura!

Afinal, o que o horror tem a ver com o medo?

Meio que… tudo. Certo, eu sei, eu disse na newsletter de apresentação que o horror não necessariamente quer causar medo. E é verdade. Mas esse é um gênero que lida com os temores que cercam a sociedade. O terror engole, rumina e então vomita tudo aquilo que inquieta. Um bom exemplo disso é o Expressionismo Alemão, um dos berços do horror no cinema.

Uma das principais características do Expressionismo Alemão era a rejeição das convenções ocidentais, por isso mostravam a realidade de forma distorcida e exagerada, na intenção de causar impacto emocional no espectador. Em De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão, Siegfried Kracauer explica que o Expressionismo focou no que havia de sombrio na alma humana, no irracional, obscuro, macabro e enigmático. Devido à proximidade com a Primeira Guerra Mundial, as obras expressionistas falavam muito do contexto sociopolítico da época, tratando de problemas de autoaceitação e identidade dos alemães.

Como eu disse: medos.

Cena do filme expressionista Nosferatu. Imagem em preto e branco. Homem careca, com sobretudo preto e braços caídos ao lado do corpo. Está parado sob uma porta aberta, olhando para frente.

Nosferatu (dir. F.W. Murnau, 1922)

Um livro que gostei muito de ler sobre o assunto foi Medo líquido, de Zygmunt Bauman. Nele, o autor fala que o medo é o sentimento de estar sempre suscetível ao perigo, uma sensação de vulnerabilidade e insegurança que acompanha o ser humano. Essa sensação não é individual, e sim coletiva — social. A origem do medo para o autor está na insegurança, e os perigos que amedrontam a sociedade podem ser divididos em três. O primeiro é a natureza, que tem potencial de nos destruir com inundações, deslizamentos, secas e cheias etc. O segundo são as outras pessoas, que podem agredir e violar umas às outras. Por fim, o terceiro tipo está em uma área cinzenta, parte ação humana, parte ação natural: o medo da internet sair do ar, das redes de energia pararem de funcionar, das bolsas de valores entrarem em colapso, aviões hiper tecnológicos caírem, empresas superpoderosas deixarem de existir de uma hora para a outra, levando consigo os serviços que a gente utiliza e os trabalhos que nos sustentam, e que pareciam sólidos até momentos antes. Uma dúzia de ações, controladas pelo ser humano ou não, que são capazes de tirar o sono e causar ansiedade.

Além disso, também existe um outro temor à espreita, um medo que nos cerca desde o momento em que entendemos que estamos vivos: a morte. O mundo segue, mas a gente, não; o mundo segue, mas quem a gente ama, não. E o que vem depois? Algumas religiões têm visões sobre o pós-morte, mas e quem não segue nenhuma? O vazio, a incerteza e a finitude — confirmada para todos, sem data definida para ninguém — são motores para uma centena de histórias sobre perda, luto, vazio. É algo que, por mais que tentemos, não podemos lutar contra, um fato que vai acontecer com todos. Não é à toa que existe o ditado “a única certeza da vida é a morte”.

Mas nem todo desconforto é sentido da mesma forma — e nem tudo é desconfortável para todo mundo. É necessário que o espectador se relacione em algum nível com os temas que estão sendo apresentados (tendo vivido ele próprio, ou entendendo o impacto que as ações tratadas podem ter) para que a trama possa ser absorvida. Já perdi as contas de quantas vezes ouvi coisas como “Corra é mesmo horror? Sério que Cisne Negro é horror? Tenho certeza de que A Maldição da Mansão Bly é só um drama…”. Isso acontece porque, para algumas pessoas, os enredos não são aterrorizantes, não “de verdade”. Não é o medo simples e direto, com jumpscares ou assassinos mascarados, e conversa diretamente com quem lida com algumas situações específicas, fazendo com que muita gente se pergunte se aquilo é mesmo terror, já que não as assustou.

Essa conexão entre obra e espectador também faz com que existam livros e filmes para diferentes faixas etárias. As histórias para crianças, por exemplo, costumam focar na casa e na família como fonte de terror, visto que esse deveria ser o espaço seguro de uma criança, então vê-lo invadido por monstros e outras coisas é assustador.

Por isso, eu gosto de pensar que as histórias de terror mais assustadoras e desconfortáveis sempre partem de um lugar muito pessoal para os criadores, e atingem os espectadores pelo todo, mas atingem profundamente cada um por um detalhe diferente — a criança amedrontada com uma porta desconhecida em casa; a adolescente obcecada pela melhor amiga; o homem preto perseguido por policiais. E, honestamente, acho que essa é uma das coisas mais especiais de obras do gênero: se encontrar ali, saber que você é o monstro, o protagonista da própria história, o caos em forma de um ser humano, ou apenas alguém tentando sobreviver à bagunça de estar vivo.

ena de Buffy, a Caça Vampiros. Buffy está em um cemitério à noite. Ela é branca, loira, tem cabelo ondulado e longo. Está andando, a câmera se aproxima e ela vira o rosto para a câmera.C

Buffy, a Caça-Vampiros (prod. Joss Whedon, 1997-2003)

Produzindo e consumindo horror

Considerando tudo isso, eu já me perguntei: por que produzir e consumir histórias do gênero? Existem várias explicações mais… técnicas, digamos assim, e algumas convergem em uma frase muito parecida: ✨ é tudo mentirinha ✨. Não que os sentimentos explorados sejam falsos, mas os horrores ali nas páginas ou nas telas não são reais, e nós sabemos disso. Nos deixamos levar pela história, mas há um alívio por saber que algo tão sombrio é só ficção, e estamos (supostamente) a salvo do mal. Também existe toda uma conexão entre o medo e o prazer, áreas do cérebro que são ativadas quando estamos assistindo ou lendo algo de terror, e explicações filosóficas e científicas para nosso fascínio pelo gênero, mas vamos focar na parte em que sabemos que os horrores na tela ou nas páginas são apenas invenções, e isso nos tranquiliza, mesmo que inconscientemente.

Isso torna o horror um espaço para auto conhecimento. É um lugar seguro para explorar o que incomoda, já que é possível absorver os sentimentos, pensar nas metáforas, se ver nos personagens. Entender os próprios limites através da ficção e refletir sobre situações da vida enquanto adolescentes caçam umas às outras em uma floresta, limitadas pela tela da televisão.

Continuo lendo e assistindo histórias do gênero porque me vejo muito nos personagens — eu seria facilmente a primeira a morrer num slasher, ou aquela que lê o livro com aviso de “não leia” bem grande na capa. Eu sou a pessoa que não sabe exatamente onde se encaixar quando se trata de alguns assuntos, assustada com a morte, incapaz de superar um luto. Faço parte de minorias, e entre lembranças contadas por parentes mais velhos e assistir às notícias desastrosas e assustadoras dos últimos anos, sei que existir às vezes é muito difícil quando se está fora de um padrão esperado.

É assustador estar — e se manter — vivo.

Então eu escrevo sobre tudo isso. Sobre o meu medo da morte e de fogo, sobre sentimentos embolados que me deixam desconfortável só de pensar, sobre perda, luto e afastamentos. E não sou a única; vários escritores fazem o mesmo. Em um ensaio que releio constantemente (e sempre penso uaaau, ela é tudo), Alyssa Wong fala os motivos pelos quais ela escreve horror. E ao mesmo tempo em que é pessoal, o texto fala muito da experiência coletiva, do que está sendo debatido ao longo de décadas:

“Sempre vivemos neste lugar, ocupando nossos corpos e sofrendo as injustiças e horrores muito reais que acompanham existir em espaços hostis. E assim escrevemos com os olhos fixos à frente, porque não tem como não ser quem somos. A ficção nos dá as ferramentas para quebrar nosso silêncio e nomear nossos demônios para que outras pessoas não assombradas possam vê-los como são. Para cristalizar nossos monstros e então despedaçá-los.”

Alyssa Wong (tradução livre)

O horror é, no fim das contas, um espelho da sociedade, e o medo é um sentimento intrínseco ao ser humano. As duas coisas estão conectadas e através da ficção podemos manipular e controlar o que nos amedronta. Afinal, o horror (e o medo e o desconforto, por consequência) é apenas uma forma entre muitas de contar histórias, então por que não explorar os sentimentos através dele?

Referências:

Medo Líquido, de Zygmunt Bauman.

Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo, de Edmund Burke.

De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão, de Siegfried Kracauer.

Algumas indicações:

  • Os perigos de fumar na cama, da Mariana Enríquez, está em pré-venda! Essa é uma coletânea de doze contos de terror com histórias sobre fantasmas, bruxas, mortos voltando à vida e quão perturbadora pode ser uma pessoa. Li As coisas que perdemos no fogo há pouco tempo e fiquei maravilhada com o quanto a Mariana é boa, tô muito empolgada para ler essa nova coletânea também!

  • O podcast Esqueletos no Armário chamou a Isabela Boscov para falar sobre a série de TV Yellowjackets e isso rendeu um episódio muito bom! Adorei as reflexões que fizeram sobre as duas temporadas e fiquei com ainda mais saudades das minhas filhas (as Yellowjackets no passado) e das minhas mães (as Yellowjackets no presente). As duas temporadas da série estão disponíveis no Paramount+!

  • Carmen Maria Machado (autora de Na casa dos sonhos) tem um ensaio sobre Garota infernal (dir. Karyn Kusama, 2009) no livro It came from the closet, e o texto está disponível on-line na íntegra e legalmente! É um ensaio muito bom sobre o filme, mas principalmente sobre bissexualidade e como é importante que as pessoas tenham espaço para abraçar a própria orientação fora de uma linha linear e padronizada. Gostei muito, me deixou pensativa.

Compras realizadas através de links indicados geram comissão; você não paga nada a mais, mas eu ganho algo! Essa edição da Outro Pesadelo foi revisada por Natália Pinheiro.

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