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#02 — O poder dos clássicos
Sobre olhar para o passado e reconhecer o que já foi feito
Uma vez a cada trimestre, um dos círculos do Inferno a internet retorna à mesma discussão: livros clássicos ainda são importantes e acessíveis? A briga costuma andar em círculos — de um lado, pessoas tentando mostrar a relevância dos clássicos; do outro, a tentativa de provar que obras escritas há tanto tempo não conversam em nada com a atualidade.
Em paralelo, de vez em quando surge algum autor, roteirista ou diretor explicando como a sua obra é inovadora. “Não, olha só, é um slasher, mas a final girl não é como as outras garotas!”, “É uma história de vampiros, mas vampiros gays, com certeza ninguém fez isso antes”, e todo esse papo que apenas demonstra um grande desconhecimento (ou seria desprezo?) sobre o trabalho que vem sendo feito há muito tempo, por tantos outros profissionais.
Acompanhar esses dois acontecimentos — que não se limitam à internet, infelizmente — é sempre chocante. Talvez seja porque eu gosto muito de pesquisar, entender e conhecer aquilo que estou me propondo a fazer, mas a ideia de olhar apenas para o lado, para o que existe aqui e agora, ignorando o passado, me deixa desconfortável. Reconhecer o que veio antes, para mim, é essencial para entender o que está sendo criado hoje — e o que podemos, sim, fazer melhor.
Oie! Antes de aprofundar no texto, deixa eu me apresentar 🔮
💀 Meu nome é Gih Alves, sou publicitária, escritora, medrosa e apaixonada por histórias de terror, seja na literatura ou no audiovisual. Adoro ler textos teóricos e acadêmicos sobre as coisas que amo, e essa newsletter é uma forma de organizar meus pensamentos e compartilhar um pouco das minhas opiniões sobre horror. Aqui você vai encontrar reflexões sobre o gênero, indicações de obras que eu gosto e sugestões de livros teóricos sobre o assunto.
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Boa leitura! ✨
Então, os clássicos
Um dos meus livros favoritos é O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë. Li na adolescência, por influência de Crepúsculo, naquela edição com capa preta e uma flor que remetia às capas da saga, e logo na primeira página senti a química do meu cérebro mudar. Mais velha, reli o livro, com medo de não ter a mesma reação, uma preocupação desnecessária: amei ainda mais a história.
Emily sabia exatamente o que estava fazendo ao escrever esse livro. E eu sei exatamente o que senti com ele: desespero, certeza de que nunca quero me apaixonar, então o desejo de me apaixonar, e felicidade por ler uma das maiores histórias já escritas. O livro narra a história de Catherine, filha de um rico proprietário de terras, e Heathcliff, um jovem órfão acolhido pelo pai de Catherine. O menino é rejeitado por toda a família, exceto por Catherine, com quem cria um forte laço de amizade que, com o passar dos anos, se torna um tipo de amor romântico. As coisas começam a dar errado quando o pai de Catherine morre e o irmão mais velho dela assume a propriedade e passa a maltratar (ainda mais) Heathcliff. Algum tempo depois, conversas sobre o casamento de Catherine se iniciam, e o escolhido por ela é Edgar Linton, vizinho da família. Ao ouvir uma conversa de sua amada com Nelly (governanta e personagem que narra a maior parte do livro), Heathcliff fica abalado e promete se vingar. E assim o faz.
(E essa não é nem de longe uma sinopse tão boa quanto eu gostaria de ter feito.)
“Catherine Earnshaw, enquanto eu viver não descansarás em paz! Disseste que te matei. Pois então assombra-me a existência! Os assassinados costumam assombrar a vida dos seus assassinos, e eu tenho certeza de que os espíritos andam pela terra. Toma a forma que quiseres, mas vem para junto de mim e me enlouquece! Não me deixes só, neste abismo onde não te encontro! Oh! Meu Deus! É indescritível a dor que sinto! Como posso eu viver sem a minha vida?! Como posso eu viver sem a minha alma?”
Algumas pessoas podem argumentar que não há nada de romântico nessa história, e tudo bem. Analisando objetivamente, O morro dos ventos uivantes é um livro gótico, com fantasmas, escuridão e um cenário decadente. Só que também vejo como uma história de amor — dramático, desesperado, com uma intensidade indesejada. Esse é um dos superpoderes dos clássicos. A obra tem uma classificação, sim, e não a ignoro; mas ela consegue abraçar cada pessoa de uma forma, e diferentes interpretações são possíveis. Não que isso não aconteça com livros atuais, mas, sabe… O morro dos ventos uivantes foi lançado originalmente em 1847 e ainda hoje, em 2023, tem algo novo a oferecer em cada leitura, para cada leitor.
Em Por que ler os clássicos, Italo Calvino diz que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (1993, p. 11). E, de fato, eu acho que O morro dos ventos uivantes ainda tem muito a dizer. Podemos analisar o livro à luz da literatura, do cinema (péssimas adaptações, infelizmente) e de diferentes campos das ciências humanas. Há muito a ser descoberto na história, através dos diálogos repletos de ódio entre Heathcliff e Catherine, ou da forma como o cenário é descrito. Existe até análise freudiana que coloca Catherine como o ego, Heathcliff como o id e Edgar como superego.
O livro favorito de Bella e Edward. E o meu também.
A possibilidade de tantas interpretações não se limita ao livro de Emily Brontë, é claro. Apenas o citei aqui porque é um dos meus livros favoritos, mas outros clássicos também me marcaram. Cada uma à sua maneira, essas histórias mexeram comigo, afetaram a forma como me relaciono com livros e influenciaram meu gosto literário. Além disso, há uma dúzia de clássicos que ainda não li, mas pretendo, e a perspectiva é sempre empolgante. O que esses livros têm para me contar? O que vou acrescentar a eles?
Assim, o clássico permanece firme através do tempo, e sua relevância não se restringe à época em que foi lançado. Há um legado cultural nas obras clássicas, uma relevância por conversar com a sociedade de forma muito abrangente, mas também muito íntima com cada leitor — o amor e a inadequação de O morro dos ventos uivantes, por exemplo, e a monstruosidade como metáfora em algumas obras de terror.
E isso não se limita à literatura — é possível usar a mesma lógica para pensar no cinema. Tantos filmes dos anos 1930, 1960, 80, 90… Histórias se desenrolando em preto e branco ou já em cores, e conflitos que, mesmo acontecendo décadas atrás, ainda ressoam na atualidade, com novos estudos, apreços, significados — como a solidão lésbica em A filha de Drácula (dir. Lambert Hillyer, 1936), por exemplo.
O filme conta a história da condessa Marya Zaleska, que tenta “se curar” de seu vampirismo — uma nítida alusão à homossexualidade. Ela deixa claro em diversos momentos do filme seu desejo de ser livre, sente-se compelida a levar uma vida dupla e caracteriza seu impulso de beber sangue como algo horrível. Lembra bastante o que muitas pessoas queer ainda vivem, não é mesmo? Uma obra de 1936 que atravessa o tempo e segue conversando com a atualidade (e é um filme muito bom!).
É importante dizer que este texto não é uma tentativa de apontar que a produção atual, seja na literatura ou no cinema, é irrelevante ou sem qualidade. Na verdade, temos grandes autores e produções de horror, como Mariana Enríquez e Ana Paula Maia na literatura, ou Anita Rocha da Silveira e Guillermo Del Toro no cinema, e vários outros além deles. Temos histórias ricas, diversas, que bebem das fontes, usam os mitos, os clássicos, as lendas, a cultura. As obras dos últimos anos são importantes e também dialogam com a sociedade atual. São um reflexo da época em que estão sendo criadas, afinal, e algumas delas irão permanecer e ser estudadas no futuro, quando nem a gente, nem os criadores estivermos aqui, sendo elas próprias clássicas.
Para mim, cada história alimenta o desejo de consumir outra. Um clássico puxa uma obra atual e vice-versa, em um ciclo contínuo — nem sempre (ok, nunca) na ordem atual-clássico, porque a ordem em si varia com os meus desejos do momento — e que preenche lacunas, cria novas, me leva a explorar a literatura, o cinema, o Google Acadêmico.
Por isso, acredito que olhar para trás e reconhecer o que veio antes é essencial para não esquecer que não estamos sozinhos no mundo. Muita coisa virá depois da gente, mas muita coisa também existiu antes de nós. E mesmo que seja impossível ter acesso a tudo e saber de tudo, ir atrás da pontinha do iceberg para conhecer o que já existe e pensar em como absorver essas histórias para si (enquanto espectador e produtor) é fundamental. É respeitar a História e os autores.
Mas nem tudo é bom
Digerir histórias também envolve digerir um pouco de História. E entender que toda obra tem uma marca do tempo em que foi produzida, o que significa que algumas vão, sim, ter elementos questionáveis. Por que os personagens negros eram sempre mortos (isso quando eles sequer existiam)? Por que a final girl era sempre a garota virginal? Essas e outras perguntas do tipo podem levar a uma análise histórica da época, e através disso podemos compreender como alguns filmes e livros eram subversivos em alguns pontos enquanto pecavam em outros. Podemos ver também que alguns autores apenas não se preocupavam com isso, o que na época era o “normal”, mas, com o passar do tempo, representatividade se tornou uma preocupação (que bom!).
Entretanto, não é possível ignorar que, com ou sem contexto, algumas pessoas eram apenas horríveis e preconceituosas. Como H. P. Lovecraft, por exemplo.
Considerado um clássico do terror, o autor nasceu em 1890 e seu trabalho alcançou sucesso após sua morte, em 1937. Ainda hoje, Lovecraft é referenciado em textos teóricos sobre o gênero e inspira outros produtores, da literatura ao cinema. Mas uma coisa que muitos escolhem ignorar ao referenciar Lovecraft é o quão racista e xenofóbico ele foi.
Na biografia H. P. Lovecraft: contra o mundo, contra a vida, Michel Houellebecq expõe como o autor sempre foi racista. Em cartas escritas por ele mesmo, Lovecraft mostrava seus posicionamentos, chegando a se referir às pessoas negras como “chimpanzés”. Esse pensamento não se restringiu à vida pessoal. Em seus contos, também é possível encontrar passagens que deixam claro o preconceito, como é o caso de O horror em Red Hook, no qual Lovecraft fala sobre os problemas da “invasão” de imigrantes em um local branco e perfeito. Além disso, um fato comum de suas histórias são as vítimas: o homem branco, professor universitário, bem educado, culto e anglo-saxão. Enquanto isso, os causadores do mal são mestiços, “mulatos”, pessoas racializadas e descritas pelo autor como pertencentes à “mais baixa espécie”.
Apesar do óbvio preconceito nessas obras, autores, diretores e roteiristas às vezes ignoram isso ao adaptar ou se inspirar em contos e novelas de Lovecraft. É quase um detalhe, um ponto sem importância na existência de Lovecraft, deixado de lado enquanto aclamam seus deuses, monstros e o medo existencial do horror cósmico, como se a contribuição dele ao gênero do terror fosse (e para alguns, é) o suficiente para apagar todas as entrelinhas e preconceitos escancarados em cada página. Porém, não é apenas porque uma história é clássica, e foi relevante para um gênero, que nós devemos apagar os fatos e os problemas em torno dela — principalmente quando não estamos falando de algo casual, mas sim da posição de um autor que sabia o que estava fazendo, que deixava clara sua posição sobre outras pessoas.
Pois ler os clássicos pede reflexão. É importante fazer uma leitura ativa para entender o que a história está dizendo e quais problemáticas ela carrega, e usar esse conhecimento para pensar no que a gente (tanto como produtor quanto como leitor) pode fazer a respeito disso. Essa não é uma tentativa minha de ignorar a existência de Lovecraft. Sua contribuição para o gênero de horror é inegável, o “terror lovecraftiano” se tornou uma descrição por si só, mas é essencial conhecer o criador e não se permitir reproduzir as mesmas visões de mundo dele.
Algumas produções já vêm fazendo essa reflexão. É o caso da série Lovecraft Country, que traz protagonismo e produtores negros. Na trama, os personagens precisam lidar não apenas com uma força poderosa e sobrenatural, mas também com um monstro bem realista: o racismo. Já na literatura, um dos autores que faz esse exercício de ressignificar Lovecraft é Victor LaValle. Em A balada de Black Tom, o autor traz uma releitura de O horror em Red Hook e também explora o racismo em meio ao enredo sobrenatural.
Tanto Lovecraft Country quanto A balada de Black Tom são exemplos de como é possível se apropriar dos clássicos sem ignorar as problemáticas envolvendo as tramas. E nós estamos em um momento em que temos cada vez mais mecanismos para ressignificar os clássicos — não apenas como produtores, mas também enquanto leitores e espectadores. Acho necessário fazer essa análise, compreender de onde vêm as escolhas dos autores e quais delas são imperdoáveis, independente da época.
Por fim, é preciso entender que os clássicos não estão acima do bem e do mal — e sim que eles são o bem e o mal, de certa forma. Assim como são responsáveis pela criação de gêneros e subgêneros, como a ficção científica (oi, Frankenstein) e o gótico (alô, O castelo de Otranto), às vezes também são responsáveis pelo reforço de ideias preconceituosas que precisam ser revistas e desfeitas. Porque, no fim, acredito que devemos conhecer os clássicos para entender referências, conhecer as bases dos gêneros de que gostamos e, quem sabe, encontrar uma nova história favorita. E também para ressignificar aquilo que já não funciona mais, e entender o que nos trouxe até aqui, em 2023, na literatura e no audiovisual, e o que poderia ser melhor. Afinal, clássicos são histórias que atravessam o tempo, e nosso relacionamento com eles é o que os torna tão poderosos.
Outros clássicos que eu amo
Para fechar essa edição da Outro Pesadelo, separei alguns clássicos do terror que amo. São apenas comentários curtos sobre três filmes e dois livros, sem ordem de preferência e excluindo o que já foi mencionado ao longo do texto. Ainda pretendo falar mais deles no futuro, mas indico desde já!
🎬 O gabinete do dr. Caligari (dir. Robert Wiene, 1920). Dr. Caligari chega a um vilarejo acompanhado do sonâmbulo Cesare, que supostamente está adormecido há mais de vinte anos. Coisas estranhas começam a acontecer e a população do vilarejo passa a investigar os visitantes. Simplesmente uma obra de arte do cinema mudo, parte do expressionismo alemão e muito bom de assistir.
📚 Carmilla, de Sheridan Le Fanu. Ouvi o audiolivro de Carmilla recentemente e fiquei muito contente por finalmente ler essa história. É curtinha, com duas garotas emocionadas e uma narrativa gostosa. Daqueles livros que eu li e fiquei “ahhh, entendi então porque todo mundo gosta”. Também gostei!
🎬 Alucarda, a filha das trevas (dir. Juan López Moctezuma, 1977). Uma adaptação mexicana de Carmilla. O filme é curto, se passa em um convento, com duas garotas se apaixonando e coisas estranhas acontecendo. Assistir a esse filme é como entrar em um sonho meio maluco em que as coisas são intensas demais, rápidas demais, e quando acaba fica aquela sensação de “meu deus o que foi isso”.
📚 A assombração da casa da colina, de Shirley Jackson. Muitos falam sobre o primeiro parágrafo desse livro (que é mesmo incrível), mas não para por aí: A assombração da casa da colina tem uma narrativa incrível e fez com que eu me sentisse dentro da casa, junto com os personagens. A relação de amizade-claramente-um-romance entre Eleanor e Theo também é ótima.
🎬 A hora do pesadelo (dir. Wes Craven, 1984). Esse aqui eu levei muito tempo para assistir, e quando finalmente aconteceu, entendi porque todo mundo ama: é incrível! Um monstro que ataca quando estamos dormindo, mortes sangrentas (de verdade) e uma protagonista muito legal de acompanhar. Tudo nesse filme é divertido, empolgante e eu adoro os personagens.
Referências
A balada de Black Tom, de Victor LaValle
Análise do romance “O morro dos ventos uivantes” segundo a teoria psicanalítica freudiana, de Lorem Estephane Tavares de Sousa
H. P. Lovecraft: contra o mundo, contra a vida, de Michel Houellebecq
O horror em Red Hook, de H. P. Lovecraft
O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë
Por que ler os clássicos, de Italo Calvino
Algumas indicações
O Querido Clássico publicou um artigo sobre o gótico em O morro dos ventos uivantes e em Jane Eyre. O texto é da Cecília Amaral e, como todos os textos do site, está incrível. Recomendo a leitura do artigo tanto para quem já leu as obras das irmãs Brontë quanto para quem ainda não leu.
Aproveitando o tema da newsletter, fica aqui a indicação do site Tênebra, que reúne histórias clássicas e sinistras brasileiras, já em domínio público. São diversas obras de autores brasileiros resgatadas e organizadas, com direito a cronologia!
Barbie - O Filme!!! É só isso, nada a declarar além de BARBIE!!!!!
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